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domingo, 15 de junho de 2014

O futuro constrói-se cuidando o presente!

Ser enfermeiro é ter nas mãos a experiência única de cuidar. Cuidar, nem que por um breve instante, imprime na alma experiências únicas de quem presencia o nascimento da vida, de quem luta pela sua preservação, de quem está presente no último suspiro. Requer, em todos os instantes, a coragem de ser o instrumento da cura, a voz do conforto, a frieza da razão, a esperança, a companhia na alegria, a luz guia em momentos de tenebrosa escuridão.
Ser enfermeiro é assumir uma forma de vida, de exigência máxima de nós próprios, de abdicar de tanto tão importante, em prol de cuidar, e de o fazer com mais excelência a cada instante.
No final de uma caminhada de 9 anos a cuidar em Portugal, não posso deixar de fazer um balanço. Um balanço que partilho, pois se aspiramos a um futuro para a Enfermagem em Portugal, temos um presente a necessitar de cuidados urgentes.
Se há algo que senti a cada dia, foi a imensa responsabilidade de ter nas mãos a vida de outros; se algo presenciei é que nenhum enfermeiro recua perante tamanha responsabilidade, não se negando a esforço algum por aqueles que cuida. Se há algo de que fui testemunha diária foi a inesgotável capacidade dos enfermeiros abdicarem de si próprios, esquecendo o repouso em noites intermináveis, esquecendo o bem-estar em refeições que não se fazem, esquecendo a família em dias especiais passados em Hospitais.
Na verdade, o sistema de saúde em Portugal há muito vê escondidas as suas deficiências graves e o seu desinteresse por cuidar com qualidade, devido ao heroico esforço dos enfermeiros, que sem incentivo ou remuneração digna, insistem em elevar a fasquia dos cuidados que prestam, fazendo mais e melhor com cada vez menos.
É, no entanto, a maior virtude dos enfermeiros, o seu maior inimigo. Aliás ninguém castiga tanto a enfermagem como os próprios enfermeiros, no que à dignidade da profissão diz respeito. A abnegação no cuidado aos outros é acompanhada de uma completa negligência no cuidado a si próprio e à sua profissão; a entrega à constante melhoria dos cuidados é acompanhada de décadas de demissão da defesa do seu próprio reconhecimento.
Esquecemo-nos que a dada altura tantas beliscadelas nas condições para cuidar, seriam feridas permanentes, impossíveis de cuidar; as refeições saltadas, os turnos em correria desenfreada, a desmultiplicação em tarefas herculanas são um disfarce para um sistema de saúde que tem obrigação não só de tratar dignamente os cidadãos, mas também respeitar e valorizar aqueles que cuidam.
Esquecemo-nos que remunerações indignas não se compensam procurando mais locais de trabalho, acumulando duplos empregos. Esquecemo-nos que colocar nas mãos de alguns as lutas de todos, não lhes juntando a voz firme de cada um, é dar a oportunidade a que nos paguem e respeitem cada vez menos. Esquecemo-nos que lamúrias nos corredores de Hospitais e Centros de Saúde, só têm eco se pronunciadas em tom convicto perante administrações, chefias e poder político e não escondidas sob desculpas de uma vida demasiado atarefada.
Esquecemo-nos acima de tudo que cuidar com excelência não produz automaticamente uma profissão forte. Vivemos aliás, estigmatizados, agarrados a um papel social demasiado pequeno para o nosso valor. Este estigma traduz-se na pequenez de muitos enfermeiros, que se esquivam da luta por todos, mas se aprontam com ligeireza para a luta entre os seus.
Um coração tão grande e uma capacidade inesgotável mereciam encontrar paralelo numa convicção forte de defesa intransigente da profissão. Chefes e cargos de qualquer pequena responsabilidade que vendem a sua profissão a troco de papéis de relevo transitórios, enfermeiros que aceitam sem pejo remunerações insultuosas, condenando a luta de outros para que mais justamente se pague, demissão de combates a injustiças que afetam alguns, esquecendo que um dia chegará a todos, são cancros que não deixam crescer uma profissão forte e reconhecida, como merece.
Veja-se a luta na Saúde 24, onde o primeiro passo na perseguição dos que acreditam na remuneração justa e trabalho digno é dado pelas chefias de enfermagem, esquecendo que são enfermeiros e não carrascos dos seus pares; onde depois da mediatização do assunto, muitos correram a aceitar condições menores, aceitando sem hesitação substituir todos os que foram criminosamente despedidos.
A enfermagem vê-se nas instituições que a representam: são o exemplo da demissão dos enfermeiros, perpetuando decisões erradas ou a simples inação, pois as novas caras que se apresentam são escassas para substituir os que tanto têm falhado.
Olhamos para um sindicato mais representativo que defende a injustiça das 40h semanais apenas quando atinge funcionários públicos, esquecendo que há largos anos muitos já cumprem as malditas horas; um sindicato que dedica inúmeras páginas do seu boletim denegrindo os enfermeiros da Saúde 24 , esquecendo abordar que se demitiu de os defender; um sindicato que perde diariamente associados que não se revêm na sua acção na defesa dos enfermeiros e da enfermagem.
Olhamos para uma Ordem com potencial para ser o farol da enfermagem, mas antes se consome em discussões internas e em posições estéreis, sempre distante daqueles que são a sua razão: os enfermeiros.
Olhei atentamente para a última Assembleia Geral da Ordem, em que muito se discutiu mas pouco se falou: insultos e acusações que em nada dignificam a profissão. Num deserto de ideias, apenas 2 intervenções cuja diferença é projetar uma enfermagem de futuro: ambas da Secção Regional do Sul (na pessoa do Enf. Alexandre Tomás e do Enf. Pedro Aguiar), que, e perdoem-me enaltecer, mostraram afinal que a esterilidade de ideias pode ser rompida e a proximidade aos enfermeiros não é um instrumento meramente eleitoralista, mas antes uma forma de estar. Talvez aqui esteja um caminho para o futuro; um caminho que existirá se não nos demitirmos de participar neste presente.
Discutem-se quotas e orçamentos, quando se deveria discutir formas das quotas valerem a pena e dos orçamentos serem direcionados para elevar a enfermagem no plano político e social ao mesmo nível que a prática há muito elevou. Não se discute a precariedade assustadora, o desemprego galopante, os rácios terceiro-mundistas ou a emigração que fere gravemente o coração da Enfermagem. Não se reflete que já não é suficiente o nosso sacrifício pessoal para cuidar com qualidade: urge exigir mais, confrontar e consciencializarmo-nos que defender a nossa profissão é defender os utentes.
Urge refletir que hoje somos nefastos para quem cuidamos: assumimos dotações impossíveis, abdicando tantas vezes de ser enfermeiros para ser posicionadores de pessoas em série, para ser administradores de medicação, para ser autómatos que cumprem mínimos: não é esta a enfermagem dos enfermeiros, esta é a enfermagem dos gestores e administradores, aqueles que não entendem o que é cuidar, pelo menos até que um dia sintam a frieza do corredor onde estão internados com um enfermeiro que passa a correr e que o vê como um número de maca.
Parto de Portugal, parto do meu hospital, depois de 9 anos enquanto enfermeiro. 9 anos em que sorri, em que chorei, em que salvei vidas, em que presenciei tantos últimos suspiros. 9 anos em que nunca desisti de ser melhor, nunca me conformei com a mediocridade dos meios que tinha a disposição e mesmo nas alturas mais difíceis não desisti de fazer a diferença.
Saio invisível para as minhas chefias e administradores, como um número, agora prestes a ser apagado, sem agradecimento ou desejo de boa sorte. Mas saio de dignidade intacta, enriquecido pelos momentos inesquecíveis com aqueles que cuidei, pelo privilégio da companhia dos que comigo trabalharam. Colegas e doentes foram e serão a minha inspiração, e por eles sei que um dia voltarei.
Tratemos desta enfermagem hoje, para que amanhã haja uma enfermagem melhor para todos. Uma enfermagem sem complexos na relação com as múltiplas profissões com que se cruza, todos parceiros no cuidar, sejam médicos, técnicos, auxiliares. Uma enfermagem corajosa que se recorda da sua excelência, do seu valor, que não se atemorize em ser vaidosa, pois os enfermeiros são a mais brilhante luz para quem precisa de ser cuidado. Uma enfermagem que se apaixone pela defesa da sua dignidade tal como há muito se apaixonou por aqueles que cuida. Uma enfermagem que não aceite tostões, que não se venda, que não se esqueça que aceitando qualquer coisa caminha para que um dia não se lhe dê nada.
Cuidemos da enfermagem da mesma maneira que cuidamos os utentes.
Artigo de Tiago Pinheiro

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